terça-feira, 15 de maio de 2012

Foro privilegiado, por quê?


A Constituição garante foro privilegiado para uma infinidade de autoridades brasileiras a pretexto de evitar condenações injustas. Na prática, porém, o privilégio tornou-se um obstáculo praticamente intransponível à condenação dos corruptos de alto escalão
A origem etimológica da palavra “privilégio” é bastante sugestiva. No latim, o adjetivo privus designava a esfera privada em oposição ao publicus, enquanto legis era o genitivo singular de lex: lei. Privilegium, em bom português é, portanto, uma lei privada; um verdadeiro estado de exceção particular, que torna o “privilegiado” alguém privado da lei ou, mais precisamente, dos rigores dela.
O foro privilegiado tradicionalmente se justificava pelos títulos de nobreza do beneficiado. Se a premissa é que nobres e povo são diferentes, não haveria sentido que o mesmo juiz que julgasse um popular também pudesse julgar um barão. Na república, porém, onde todos são iguais perante a lei, a própria ideia de um foro privilegiado já se mostraria incoerente, daí porque se criou o eufemismo com o qual muitos juristas e políticos procuram legitimar a existência de um foro privilegiado até hoje: a “prerrogativa de função”.
A prerrogativa de função é essencialmente um foro privilegiado que se justifica não mais no azulado do sangue ou em um título vitalício de nobreza, mas no estado transitório de alguém do povo que ocupa um cargo azul da república. O privilégio vitalício se torna transitório e vinculado ao exercício de um cargo importante. Sua justificativa não é mais o fato de algumas pessoas serem melhores que outras, mas de alguns cargos públicos, por questões estratégicas, necessitarem de uma blindagem especial para evitar o uso político do processo penal.
A lista de privilegiados elencada na Constituição brasileira é possivelmente a maior do mundo. Em muitos países, o presidente da República e os chefes dos demais Poderes são beneficiados com a prerrogativa de função, tendo em vista a enorme visibilidade do cargo. Somente no Brasil, porém, autoridades tão diversas quanto governadores, deputados, senadores, ministros, membros dos Tribunais de Contas, comandantes das forças armadas e – pasmem – até mesmo prefeitos e deputados estaduais têm foro privilegiado.
Alegam os defensores da prerrogativa de função que autoridades do alto escalão precisam ser julgadas por juízes experientes, que estariam menos sujeitos a pressões externas. Na prática, entretanto, essa premissa se mostra completamente falsa, pois o processo penal brasileiro garante a todos os réus condenados a possibilidade de recorrerem para os Tribunais de Justiça e, posteriormente, para os Tribunais Superiores, para que possam ter seus casos reexaminados por juízes mais experientes. Ainda que não houvesse o foro privilegiado, a palavra final sobre a condenação ou absolvição dessas autoridades seria mesmo do Supremo Tribunal Federal (STF), pois esse tipo de réu é sempre assistido por ótimos advogados, que não têm maiores dificuldades em levar a questão a julgamento pelo STF, até pela repercussão política dos fatos.
A discussão sobre o foro privilegiado não é uma discussão sobre quem irá julgar o réu definitivamente, mas sim sobre quem irá presidir a fase de coleta de provas. Em qualquer processo, o juiz leva meses e até anos ouvindo partes, testemunhas, determinando a elaboração de provas periciais e coletando todas as demais provas necessárias para o esclarecimento do fato. Esta fase, chamada de instrução probatória, é indiscutivelmente a mais demorada do processo. Finda a instrução, cabe ao juiz estudar as provas produzidas e julgar o caso. A fase do julgamento, em si, é relativamente rápida, pois só depende da disponibilidade de tempo do magistrado para examinar as provas e redigir sua decisão.
Quando há recursos, o tribunal não refaz a fase da coleta de provas, mas tão somente examina as provas produzidas e julga se a decisão do juiz foi acertada ou não. E é justamente por não ter participado da produção das provas que os magistrados do tribunal, em princípio, estão mais distanciados emocionalmente dos fatos e têm condições de decidir com maior imparcialidade. Daí a enorme importância do princípio do duplo grau de jurisdição, que garante ao acusado a possibilidade de recorrer de sua condenação para um tribunal que não participou da fase da coleta de provas e de ter seu caso julgado ao menos duas vezes.
Do ponto de vista estritamente jurídico, o foro privilegiado seria uma enorme desvantagem para o acusado, pois se no julgamento pelo juiz de primeira instância ele sempre poderá recorrer para ter decisões mais favoráveis em outros tribunais, no julgamento com foro privilegiado, muitas vezes a decisão é definitiva, já que, quando a competência é do STF, não há um órgão superior para o qual se possa recorrer.
Na prática, porém, o foro privilegiado é sinônimo de blindagem e de impunidade, pois a morosidade na coleta de provas torna inviável qualquer condenação. Em 2007, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) realizou a pesquisa “Juízes contra a Corrupção” e constatou que das 130 ações penais que tramitaram no STF, por conta do foro privilegiado, entre 1988 e 2007, nenhuma resultou em condenação. Das 483 que tramitaram no Superior Tribunal de Justiça (STJ), houve condenação em apenas cinco casos.
O foro privilegiado propicia a impunidade, pois coloca os tribunais para trabalhar justamente na parte mais demorada do processo, isto é, na coleta de provas. Tribunais são órgãos do Judiciário concebidos para examinar recursos em processos nos quais as provas já foram colhidas e não dispõem da infraestrutura e de funcionários treinados para coletar provas em tempo hábil para o julgamento, o que acaba resultando na prescrição ou em uma deficiente coleta de provas.
A função declarada do foro privilegiado é garantir um julgamento justo por um juiz mais experiente, mas, na prática, sua função manifesta é garantir uma blindagem das autoridades de alto escalão por meio de um procedimento tão burocrático e inviável que resultará quase inevitavelmente em extinção da punibilidade por prescrição ou absolvição por falta de provas. O senso comum forense sabe muito bem que casos de tamanha gravidade acabarão sempre sendo julgados em definitivo pelo STF, para onde os advogados dos acusados irão inevitavelmente recorrer. A diferença é que a instrução probatória seria muito mais ágil se as provas fossem colhidas em primeira instância.
Alegam os defensores do foro privilegiado que, mesmo que as condenações de primeira instância não sejam definitivas, seriam por si só suficientes para macular a imagem honrada dessas autoridades, colocando em risco suas carreiras públicas, no que, de fato, têm toda razão. Juízes muitas vezes erram, e julgamentos precipitados infelizmente podem destruir carreiras e, consequentemente, vidas.
É preciso lembrar, no entanto, que pedreiros, faxineiros e lavradores são condenados injustamente todos os dias, perdem seus empregos e seus amigos por conta do estigma que lhes é atribuído e também têm suas vidas destruídas. O foro privilegiado não soluciona os erros do Judiciário, apenas impede que algumas autoridades estejam sujeitas a eles, não porque isso possa causar alguma instabilidade política, mas porque essas autoridades são consideradas como uma espécie de nobreza além do bem e do mal. Em uma república digna do nome, ministros, senadores ou governadores também estarão sujeitos aos mesmos erros dos mesmos juízes que, com seus equívocos, destroem a vida de cidadãos comuns do povo. A tutela de reputações individuais não é suficiente para legitimar a existência de um foro privilegiado.
Em casos particularmente específicos, como por exemplo, o cargo de presidente da República, uma condenação criminal contra o chefe do Poder Executivo poderia gerar uma instabilidade política de repercussões gigantescas para o País. Por conta desta tutela da ordem política nacional (e não da honra do indivíduo que exerce o cargo de presidente), justifica-se a existência de um foro privilegiado. Nos casos de condenações de prefeitos, governadores, ministros, senadores e deputados, só para citar alguns cargos, haveria, contudo, muito pouco ou mesmo nenhum abalo da ordem política nacional. A prática tem demonstrado que, em casos como esse, os acusados são afastados de seus cargos muito antes de um julgamento definitivo, que, quando ocorre, muitas vezes desperta pouco interesse da grande mídia.
A prerrogativa de função em uma república só pode e deve existir para garantir a ordem política do Estado, e nunca para melhor garantir a reputação dos titulares desses cargos. Do contrário, estar-se-ia retomando o velho modelo do juiz comum para julgar o povo e do juiz extremamente qualificado para julgar os barões, partindo da falácia de que a honra de um cidadão do povo tem menor valor que a honra de um nobre.
Para tentar sanar essa excrescência jurídica completamente incompatível com os ideais republicanos, tramita no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 81/2007, de autoria do senador Gerson Camata (PMDB-ES), que está aguardando designação de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) desde 14 de janeiro de 2011, em uma demonstração explícita de falta de interesse político de se votar a matéria. Diante da letargia do Senado, o deputado federal Rubens Bueno (PPS-PR) propôs este ano a PEC nº 142/2012, com o mesmo objetivo, de pôr fim ao foro privilegiado. Se não houver, porém, uma efetiva mobilização popular em torno do tema, dificilmente será votada e aprovada, pois não é crível que deputados e senadores cortem seus próprios privilégios de forma espontânea.
A construção da república no Brasil ainda é uma tarefa inacabada. Nossa cultura aristocrática está por todas as partes, desde as placas pretas dos carros de luxo até os títulos de doutor usados como pronome de tratamento. E está também no foro privilegiado. É lamentável que os atuais “barões”, “condes” e “duques”, eleitos pelo voto popular ou indicados pelo presidente da República, insistam em se apropriar da res publica e defender seus privilégios como garantias necessárias para o exercício do cargo. O povo, porém, não pode nem deve aguardar passivamente o dia em que essa nobreza irá abdicar por conta própria de seus privilégios, pois o mais provável é que esse dia nunca chegue.
Os princípios republicanos não foram um presente concedido pelos nobres aos plebeus. Foram conquistas. E é preciso conquistar também o fim do privilégio de foro, pois a principal causa da impunidade dos corruptos de alto escalão é esta blindagem que hoje lhes é concedida. Somente quando ministros e lavradores forem julgados pelos mesmos juízes poderemos começar a construir uma república digna do nome.

Por Túlio Vianna, no Revista Fórum

* Pescado aqui, no Contexto Livre


sábado, 12 de maio de 2012

Veta, Dilma


* Texto pescado aqui, no site do IPAM.

Este texto reflete exame minucioso do Projeto de Lei 1876/99, revisado pela Câmara dos Deputados na semana passada, à luz dos compromissos da Presidenta Dilma Rousseff assumidos em sua campanha nas eleições de 2010.

Para cumprir seu compromisso de campanha e não permitir incentivos a mais desmatamentos, redução de área de preservação e anistia a crimes ambientais, a Presidenta Dilma terá que reverter ou recuperar, no mínimo, os dispositivos identificados abaixo. No entanto, a maioria dos dispositivos é irreversível ou irrecuperável por meio de veto parcial.

A hipótese de vetos pontuais a alguns ou mesmo a todos os dispositivos aqui comentados, além de não resolver os problemas centrais colocados por cada dispositivo (aprovado ou rejeitado), terá como efeito a entrada em vigor de uma legislação despida de clareza, de objetivos, de razoabilidade, de proporcionalidade e de justiça social. Vulnerável, pois, ao provável questionamento de sua constitucionalidade. Além disso, deixará um vazio de proteção em temas sensíveis como as veredas na região de Cerrado e os mangues.

Para preencher os vazios fala-se da alternativa de uma Medida Provisória concomitante com a mensagem de veto parcial. Porém esta não é umasolução, pois devolve à bancada ruralista e à base rebelde na Câmara dos Deputados o poder final de decidir novamente sobre a mesma matéria. A Câmara dos Deputados infelizmente já demonstrou por duas vezes - em menos de um ano - não ter compromisso e responsabilidade para com o Código Florestal. Partidos da base do governo como o PSD, PR, PP, PTB, PDT capitaneados pelo PMDB, elegeram o Código Florestal como a “questão de honra” para derrotar politicamente o governo por razões exóticas à matéria.

Seja por não atender ao interesse público nacional por uma legislação que salvaguarde o equilíbrio ecológico, o uso sustentável dos recursos naturais e a justiça social, seja por ferir frontalmente os princípios do desenvolvimento sustentável, da função social da propriedade rural, da precaução, do interesse público, da razoabilidade e proporcionalidade, da isonomia e da proibição de retrocesso em matéria de direitos sociais,o texto aprovado na Câmara dos Deputados merece ser vetado na íntegra pela Presidenta da República.

Ato contínuo deve ser constituída uma força-tarefa para elaborar uma proposta de Política Florestal ampla para o Brasil a ser apresentada no Senado Federal e que substitua o atual Código Florestal elevando o grau de conservação das florestas e ampliando de forma decisiva as oportunidades para aqueles que desejam fazer prosperar no Brasil uma atividade rural sustentável que nos dê orgulho não só do que produzimos, mas da forma como produzimos.

Enquanto esta nova lei é criada, é plenamente possível por meio da legislação vigente e de regulamentos (decretos e resoluções do CONAMA) o estabelecimento de mecanismos que viabilizem a regularização ambiental e a atividade agropecuária, principalmente dos pequenos produtores rurais.



13 razões para o veto total do PL 1876/99

1 Supressão do artigo 1º do texto aprovado pelo Senado que estabelecia os princípios jurídicos de interpretação da lei que lhe garantia a essência ambiental no caso de controvérsias judiciais ou administrativas. Sem esse dispositivo, e considerando-se todos os demais problemas abaixo elencados neste texto, fica explícito que o propósito da lei é simplesmente consolidar atividades agropecuárias ilegais em áreas ambientalmente sensíveis, ou seja, uma lei de anistia florestal. Não há como sanar a supressão desses princípios pelo veto.

2 Utilização de conceito incerto e genérico de pousio e supressão do conceito de áreas abandonadas e subutilizadas. Ao definir pousio como período de não cultivo (em tese para descanso do solo) sem limite de tempo (Art. 3 inciso XI), o projeto permitirá novos desmatamentos em áreas de preservação (encostas, nascentes etc.) sob a alegação de que uma floresta em regeneração (por vezes há 10 anos ou mais) é, na verdade, uma área agrícola “em descanso”. Associado ao fato de que o conceito de áreas abandonadas ou subutilizadas, previsto tanto na legislação hoje em vigor como no texto do Senado, foi deliberadamente suprimido, teremos um duro golpe na democratização do acesso e da terra, pois áreas malutilizadas, possuídas apenas para fins especulativos, serão do dia para a noite terras “produtivas em descanso”. Essa brecha enorme para novos desmatamentos não pode ser resolvida com veto.

3 Dispensa de proteção de 50 metros no entorno de veredas (inciso XI do Art.4º). Isso significa a consolidação de ocupações ilegalmente feitas nessas áreas como também novos desmatamentos no entorno das veredas hoje protegidas. Pelo texto aprovado, embora as veredas continuem sendo consideradas área de preservação, elas estarão na prática desprotegidas, pois seu entorno imediato estará sujeito a desmatamento, assoreamento e possivelmente a contaminação com agroquímicos. Sendo as veredas uma das principais fontes de água do Cerrado, o prejuízo é enorme, e não é sanável pelo veto presidencial.

4 Desproteção ás áreas úmidas brasileiras. Com a mudança na forma de cálculo das áreas de preservação ao longo dos rios (Art. 4º), o projeto deixa desprotegidos, segundo cálculos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), 400 mil km² de várzeas e igapós. Isso permitirá que esses ecossistemas riquíssimos possam ser ocupados por atividades agropecuárias intensivas, afetando não só a biodiversidade como a sobrevivência de centenas de milhares de famílias que delas fazem uso sustentável.

5 Aumento das possibilidades legais de novos desmatamentos em APP - O novo texto (no § 6º do Art. 4º) autoriza novos desmatamentos indiscriminadamente em APP para implantação de projetos de aquicultura em propriedades com até 15 módulos fiscais (na Amazônia, propriedades com até 1.500 hectares – na Mata Atlântica propriedades com mais de 1.000 hectares) e altera a definição das áreas de topo de morro reduzindo significativamente a sua área de aplicação (Art.4º, IX). Em nenhum dos dois casos o veto pode reverter o estrago que a nova Lei irá causar, ampliando as áreas de desmatamento em áreas sensíveis.

6 Ampliação de forma ampla e indiscriminada do desmatamento e ocupação nos manguezais ao separar os apicuns e salgados do conceito de manguezal e ao delegar o poder de ampliar e legalizar ocupações nesses espaços aos Zoneamentos Estaduais, sem qualquer restrição objetiva (§§ 5º e 6º do Art. 12). Os Estados terão amplos poderes para legalizar e liberar novas ocupações nessas áreas. Resultado: enorme risco de significativa perda de área de manguezais que são cruciais para conservação da biodiversidade e produção marinha na zona costeira. Não tem como resgatar pelo veto as condições objetivas para ocupação parcial desses espaços, tampouco o conceito de manguezal que inclui apicuns e salgados.

7 Permite que a Reserva Legal na Amazônia seja diminuída mesmo para desmatamentos futuros, ao não estabelecer, no Art. 14, um limite temporal para que o Zoneamento Ecológico Econômico autorize a redução de 80% para 50% do imóvel. A lei atual já traz essa deficiência, que incentiva que desmatamentos ilegais sejam feitos na expectativa de que zoneamentos futuros venham legalizá-los, e o projeto não resolve o problema.

8 Dispensa de recomposição de Áreas de Preservação Permanente (APPs). O texto revisado pela Câmararessuscita a emenda 164 (aprovada na primeira votação na Câmara dos Deputados, contra a orientação do governo), que consolida todas as ocupações agropecuárias existentes às margens dos rios, algo que a ciência brasileira vem reiteradamente dizendo ser um equívoco gigantesco. Apesar de prever a obrigatoriedade de recomposição mínima de 15 metros para rios inferiores a 10 metros de largura, fica em aberto a obrigatoriedade de recomposição de APPs de rios maiores, o que gera não só um possível paradoxo (só partes dos rios seriam protegidas), como abre uma lacuna jurídica imensa, a qual só poderá ser resolvida por via judicial, aumentando a tão indesejada insegurança jurídica. O fim da obrigação de recuperação do dano ambiental promovida pelo projeto condenará mais de 70% das bacias hidrográficas da Mata Atlântica, as quais já têm mais de 85% de sua vegetação nativa desmatada. Ademais, embora a alegação seja legalizar áreas que já estavam “em produção” antes de supostas mudanças nos limites legais, o projeto anistia todos os desmatamentos feitos até 2008, quando a última modificação legal foi em 1986. Mistura-se, portanto, os que agiram de acordo com a lei da época com os que deliberadamente desmataram áreas protegidas apostando na impunidade (que o projeto visa garantir). Cria-se, assim, uma situação anti-isonômica, tanto por não fazer qualquer distinção entre pequenos e grandes proprietários em situação irregular, como por beneficiar aqueles que desmataram ilegalmente em detrimento dos proprietários que o fizeram de forma legal ou mantiveram suas APPs conservadas. É flagrante, portanto, a falta de razoabilidade e proporcionalidade da norma contida no Art. 62, e um retrocesso monumental na proteção de nossas fontes de água.

9 Consolidação de pecuária improdutiva em encostas, bordas de chapadas, topos de morros e áreas em altitude acima de 1.800 metros (Art. 64), o que representa um grave problema ambiental principalmente na região Sudeste do País pela instabilidade das áreas (áreas de risco), inadequação e improdutividade dessas atividades nesses espaços. No entanto, o veto pontual a esse dispositivo inviabilizará atividades menos impactantes com espécies arbóreas perenes (café, maçã, dentre outras) em pequenas propriedades rurais, hipóteses em que houve algum consenso no debate no Senado. O veto parcial resolve o problema ambiental das encostas, no entanto não resolve o problema dos pequenos produtores.

10 Ausência de mecanismos que induzam a regularização ambiental e privilegiem o produtor que preserva em relação ao que degrada os recursos naturais. O projeto revisado pela Câmara suprimiu o art. 78 do Senado, que impedia o acesso ao crédito rural aos proprietários de imóveis rurais não inscritos no Cadastro Ambiental Rural - CAR após 5 anos da publicação da Lei. Retirou também a regra que vedava o direcionamento de subsídios econômicos a produtores que tenham efetuado desmatamentos ilegais posteriores a julho de 2008. Com isso, não só não haverá instrumentos que induzam a adesão aos Programas de Regularização Ambiental, como fica institucionalizado o incentivo perverso, que premia quem descumpre deliberadamente a lei. Propriedades com novos desmatamentos ilegais poderão aderir ao CAR e demandar incentivos para recomposição futura. Somando-se ao fato de que foi retirada a obrigatoriedade de publicidade dos dados do CAR, este perde muito de seu sentido. Um dos únicos aspectos positivos de todo o projeto foi mutilado. Essa lacuna não é sanável pelo veto. A lei perde um dos poucos ganhos potenciais para a governança ambiental.

11 Permite que imóveis de até 4 módulos fiscais não precisem recuperar sua Reserva Legal (Art. 68), abrindo brechas para uma isenção quase generalizada. Embora os defensores do projeto argumentem que esse dispositivo é para permitir a sobrevivência de pequenos agricultores, que não poderiam abrir mão de áreas produtivas para manter a reserva, o texto não traz essa flexibilização apenas aos agricultores familiares, como seria lógico e foi defendido ao longo do processo legislativo por organizações socioambientalistas e camponesas. Com isso, permite que mesmo proprietários que tenham vários imóveis menores de 4 módulos fiscais - e, portanto, tenham terra mais que suficiente para sua sobrevivência – possam se isentar da recuperação da Reserva Legal. Ademais, abre brechas para que imóveis maiores do que esse tamanho, mas com matrículas desmembradas, se beneficiem dessa isenção. Essa isenção fará com que mais de 90% dos imóveis do país sejam dispensados de recuperar suas reservas legais e jogaria uma pá de cal no objetivo de recuperação da Mata Atlântica, pois, segundo dados do Ipea, 67% do passivo de Reserva Legal está em áreas com até 4 módulos.

12 Cria abertura para discussões judiciais infindáveis sobre a necessidade de recuperação da RL (Art. 69). A pretexto de deixar claro que aqueles que respeitaram a área de Reserva Legal de acordo com as regras vigentes à época estão regulares, ou seja, não precisam recuperar áreas caso ela tenha sido aumentada posteriormente (como ocorreu em áreas de floresta na Amazônia, em 1996), o projeto diz simplesmente que não será necessário nenhuma recuperação, e permite que a comprovação da legalidade da ocupação seja com “descrição de fatos históricos de ocupação da região, registros de comercialização, dados agropecuários da atividade”. Ou seja, com simples declarações, o proprietário poderá se ver livre da RL, sem ter que comprovar com autorizações emitidas ou imagens de satélite que a área efetivamente havia sido legalmente desmatada.

13 Desmonte do sistema de controle da exploração de florestas nativas e transporte de madeira no país. O texto do PL aprovado permite manejo da Reserva Legal para exploração florestal sem aprovação de plano de manejo (que equivale ao licenciamento obrigatório para áreas que não estão em Reserva Legal), desmonta o sistema de controle de origem de produtos florestais (DOF – Documento de Origem Florestal) ao permitir que vários sistemas coexistam sem integração. A Câmara rejeitou o parágrafo 5º do Art. 36 do Senado, o que significa a dispensa de obrigação de integração dos sistemas estaduais com o sistema federal (DOF). Como a competência por autorização para exploração florestal é dos Estados (no caso de propriedades privadas rurais e Unidades de Conservação estaduais), o governo federal perde completamente a governança sobre o tráfico de madeira extraída ilegalmente (inclusive dentro de Unidades de Conservação federais e Terras Indígenas) e de outros produtos florestais no País. Essa lacuna não é sanável pelo veto presidencial.

Há ainda outros pontos problemáticos no texto aprovado confirmado pela Câmara cujo veto é fundamental e que demonstram a inconsistência do texto legal, que se não for vetado por completo resultará numa colcha de retalhos.

A todos esses pontos se somam os vícios de origem insanáveis deste PL, como é o caso da definição injustificável da data de 22 de julho de 2008 como marco zero para consolidação e anistia de todas as irregularidades cometidas contra o Código Florestal em vigor desde 1965. Mesmo que fosse levado em conta a última alteração em regras de proteção do Código Florestal, essa data não poderia ser posterior a 2001, isso sendo muito generoso, pois a última alteração em regras de APP foi realizada em 1989.

Por essas razões, não vemos alternativa sensata à Presidente da República se não o veto integral ao PL 1876/99.

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* por André Lima – Advogado, mestre em Política e Gestão Ambiental pela UnB, Assessor de Políticas Públicas do IPAM, Consultor Jurídico da Fundação SOS Mata Atlântica e Sócio-fundador do Instituto Democracia e Sustentabilidade, Raul Valle – Advogado, mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Coordenador Adjunto do Instituto Socioambiental e Tasso Azevedo – Eng. Florestal, Consultor e Empreendedor Sociambiental, Ex-Diretor Geral do Serviço Florestal Brasileiro.