quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Sanga da Bosta



Um dia desses parei para olhar um calendário de parede, tipo “folhinha”, que mostrava uma paisagem alpina, uma maravilha de lugar. Em primeiro plano, um córrego de águas limpas com uma pequena ponte por cima. Nas margens, grama verde bem aparada e muitas flores.
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Tinha também casas brancas ao lado de uma igreja, e pinheiros por toda parte, daqueles que enfeitam os cartões postais da Europa. Tudo muito bonito. Pelo jeito, deve ser alguma aldeia do norte da Alemanha, ou da Suíça, e a fotografia retrata o outono, transmitindo aquela sensação de frio e tranqüilidade da estação.
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Até me distraí olhando a paisagem, que é costumeira nas “folhinhas”, e nos faz desejar morar num lugar assim, onde é tudo organizado e limpo. 
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Em seguida, me dei conta de que essa percepção deve-se a um paradigma, incrustado em nossa memória subamericana pela repetição exaustiva, pois os calendários, e outras formas de comunicação, há décadas mostram esse tipo de local como um ideal de “beleza natural”.
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A verdade é que, embora esses lugares sejam muito bonitos, padrão de beleza é o que a natureza do Brasil nos proporciona. O problema é que não valorizamos o que é nosso, e o pior, além de acharmos que a grama do vizinho é sempre mais verde, ainda emporcalhamos o local em que vivemos.
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Eu duvido, por exemplo, que a Sanga das Piúgas de cinqüenta anos fosse menos bonita que o córrego do calendário. Ao contrário, até aposto que, se essa modesta sanguinha estivesse hoje ao menos parecida com a que Deus desenhou, já seria muito mais linda pra se mostrar numa “folhinha”.
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Infelizmente, governantes de épocas passadas permitiram que a sanga fosse canalizada em muitos trechos, com prédios sendo construídos sobre seu leito. E foi transformada em esgoto cloacal. O mesmo ocorreu com outras sangas do perímetro urbano, a maioria já desaparecida, sob a forma de encanamento subterrâneo.
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Não é correto julgar os antigos, usando medidas atuais, estranhas ao seu tempo, como as preocupações ambientais que temos hoje. Nomear culpados, além disso, também não reverteria a situação atual. Mas alertar para que o erro não persista, e tentar reverter esse quadro, isso nós podemos.
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Na parte que foi “enterrada”, não há como desmanchar o que já está construído, mas podem ser buscadas formas de reduzir o impacto das emissões. Nesse sentido, há práticas ecológicas que poderiam ser experimentadas, algumas bastante simples, como a utilização de plantas aquáticas que agem como “filtros” naturais.
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Mas é preciso eliminar o despejo de esgoto na Sanga, em todos os outros locais em que isso for possível. Afinal, não se pode esquecer nunca que é um curso de água natural, e se está poluído, é um dever recuperá-lo.
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A obra em curso, salvo engano, não vai diminuir em um único centímetro cúbico a quantidade de dejetos despejados diariamente na Sanga, o que é uma pena. 
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Isso me faz imaginar se já não é o momento de começar a “isolar” o esgoto cloacal, separando-o da rede pluvial que deságua na sanga, direcionando-o para a rede da Corsan, a fim de que chegue à estação de tratamento. Acho que todas as obras futuras deveriam levar isso em conta.
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Deixar cair na Sanga somente as águas da chuva, ajardinar e plantar árvores nas margens. Restaurar uma paisagem mais fiel ao plano original do Criador, e daqui a alguns anos, sentar na sombra para olhar os lambaris nadando na água transparente.  Esse é o plano.
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Ou então assumimos que é um esgoto mesmo, deixamos como está, e mudamos seu nome para “Esgoto das Piúgas” ou “Sanga da Bosta”. E, tiramos fotografias, e as colocamos nas “folhinhas” do ano que vem. Se é assim que a cidade gosta, vão vender bem.
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Publicado no Jornal Folha da Cidade, Dom Pedrito, em 26.05.2007

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