A Constituição garante foro privilegiado para uma infinidade de autoridades
brasileiras a pretexto de evitar condenações injustas. Na prática, porém, o
privilégio tornou-se um obstáculo praticamente intransponível à condenação dos
corruptos de alto escalão
A origem etimológica da palavra “privilégio” é bastante sugestiva. No
latim, o adjetivo privus designava a esfera privada em oposição ao publicus,
enquanto legis era o genitivo singular de lex: lei. Privilegium, em bom
português é, portanto, uma lei privada; um verdadeiro estado de exceção
particular, que torna o “privilegiado” alguém privado da lei ou, mais
precisamente, dos rigores dela.
O foro privilegiado tradicionalmente se justificava pelos títulos de
nobreza do beneficiado. Se a premissa é que nobres e povo são diferentes, não
haveria sentido que o mesmo juiz que julgasse um popular também pudesse julgar
um barão. Na república, porém, onde todos são iguais perante a lei, a própria
ideia de um foro privilegiado já se mostraria incoerente, daí porque se criou o
eufemismo com o qual muitos juristas e políticos procuram legitimar a
existência de um foro privilegiado até hoje: a “prerrogativa de função”.
A prerrogativa de função é essencialmente um foro privilegiado que se
justifica não mais no azulado do sangue ou em um título vitalício de nobreza,
mas no estado transitório de alguém do povo que ocupa um cargo azul da
república. O privilégio vitalício se torna transitório e vinculado ao exercício
de um cargo importante. Sua justificativa não é mais o fato de algumas pessoas
serem melhores que outras, mas de alguns cargos públicos, por questões
estratégicas, necessitarem de uma blindagem especial para evitar o uso político
do processo penal.
A lista de privilegiados elencada na Constituição brasileira é possivelmente
a maior do mundo. Em muitos países, o presidente da República e os chefes dos
demais Poderes são beneficiados com a prerrogativa de função, tendo em vista a
enorme visibilidade do cargo. Somente no Brasil, porém, autoridades tão
diversas quanto governadores, deputados, senadores, ministros, membros dos
Tribunais de Contas, comandantes das forças armadas e – pasmem – até mesmo
prefeitos e deputados estaduais têm foro privilegiado.
Alegam os defensores da prerrogativa de função que autoridades do alto
escalão precisam ser julgadas por juízes experientes, que estariam menos
sujeitos a pressões externas. Na prática, entretanto, essa premissa se mostra
completamente falsa, pois o processo penal brasileiro garante a todos os réus
condenados a possibilidade de recorrerem para os Tribunais de Justiça e,
posteriormente, para os Tribunais Superiores, para que possam ter seus casos
reexaminados por juízes mais experientes. Ainda que não houvesse o foro
privilegiado, a palavra final sobre a condenação ou absolvição dessas
autoridades seria mesmo do Supremo Tribunal Federal (STF), pois esse tipo de
réu é sempre assistido por ótimos advogados, que não têm maiores dificuldades
em levar a questão a julgamento pelo STF, até pela repercussão política dos
fatos.
A discussão sobre o foro privilegiado não é uma discussão sobre quem irá
julgar o réu definitivamente, mas sim sobre quem irá presidir a fase de coleta
de provas. Em qualquer processo, o juiz leva meses e até anos ouvindo partes,
testemunhas, determinando a elaboração de provas periciais e coletando todas as
demais provas necessárias para o esclarecimento do fato. Esta fase, chamada de
instrução probatória, é indiscutivelmente a mais demorada do processo. Finda a
instrução, cabe ao juiz estudar as provas produzidas e julgar o caso. A fase do
julgamento, em si, é relativamente rápida, pois só depende da disponibilidade
de tempo do magistrado para examinar as provas e redigir sua decisão.
Quando há recursos, o tribunal não refaz a fase da coleta de provas, mas
tão somente examina as provas produzidas e julga se a decisão do juiz foi
acertada ou não. E é justamente por não ter participado da produção das provas
que os magistrados do tribunal, em princípio, estão mais distanciados
emocionalmente dos fatos e têm condições de decidir com maior imparcialidade.
Daí a enorme importância do princípio do duplo grau de jurisdição, que garante
ao acusado a possibilidade de recorrer de sua condenação para um tribunal que
não participou da fase da coleta de provas e de ter seu caso julgado ao menos
duas vezes.
Do ponto de vista estritamente jurídico, o foro privilegiado seria uma
enorme desvantagem para o acusado, pois se no julgamento pelo juiz de primeira
instância ele sempre poderá recorrer para ter decisões mais favoráveis em outros
tribunais, no julgamento com foro privilegiado, muitas vezes a decisão é
definitiva, já que, quando a competência é do STF, não há um órgão superior
para o qual se possa recorrer.
Na prática, porém, o foro privilegiado é sinônimo de blindagem e de impunidade,
pois a morosidade na coleta de provas torna inviável qualquer condenação. Em
2007, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) realizou a pesquisa
“Juízes contra a Corrupção” e constatou que das 130 ações penais que tramitaram
no STF, por conta do foro privilegiado, entre 1988 e 2007, nenhuma resultou em
condenação. Das 483 que tramitaram no Superior Tribunal de Justiça (STJ), houve
condenação em apenas cinco casos.
O foro privilegiado propicia a impunidade, pois coloca os tribunais para
trabalhar justamente na parte mais demorada do processo, isto é, na coleta de
provas. Tribunais são órgãos do Judiciário concebidos para examinar recursos em
processos nos quais as provas já foram colhidas e não dispõem da infraestrutura
e de funcionários treinados para coletar provas em tempo hábil para o
julgamento, o que acaba resultando na prescrição ou em uma deficiente coleta de
provas.
A função declarada do foro privilegiado é garantir um julgamento justo
por um juiz mais experiente, mas, na prática, sua função manifesta é garantir
uma blindagem das autoridades de alto escalão por meio de um procedimento tão
burocrático e inviável que resultará quase inevitavelmente em extinção da
punibilidade por prescrição ou absolvição por falta de provas. O senso comum forense
sabe muito bem que casos de tamanha gravidade acabarão sempre sendo julgados em
definitivo pelo STF, para onde os advogados dos acusados irão inevitavelmente
recorrer. A diferença é que a instrução probatória seria muito mais ágil se as
provas fossem colhidas em primeira instância.
Alegam os defensores do foro privilegiado que, mesmo que as condenações
de primeira instância não sejam definitivas, seriam por si só suficientes para
macular a imagem honrada dessas autoridades, colocando em risco suas carreiras
públicas, no que, de fato, têm toda razão. Juízes muitas vezes erram, e
julgamentos precipitados infelizmente podem destruir carreiras e,
consequentemente, vidas.
É preciso lembrar, no entanto, que pedreiros, faxineiros e lavradores
são condenados injustamente todos os dias, perdem seus empregos e seus amigos
por conta do estigma que lhes é atribuído e também têm suas vidas destruídas. O
foro privilegiado não soluciona os erros do Judiciário, apenas impede que
algumas autoridades estejam sujeitas a eles, não porque isso possa causar
alguma instabilidade política, mas porque essas autoridades são consideradas
como uma espécie de nobreza além do bem e do mal. Em uma república digna do
nome, ministros, senadores ou governadores também estarão sujeitos aos mesmos
erros dos mesmos juízes que, com seus equívocos, destroem a vida de cidadãos
comuns do povo. A tutela de reputações individuais não é suficiente para
legitimar a existência de um foro privilegiado.
Em casos particularmente específicos, como por exemplo, o cargo de
presidente da República, uma condenação criminal contra o chefe do Poder
Executivo poderia gerar uma instabilidade política de repercussões gigantescas
para o País. Por conta desta tutela da ordem política nacional (e não da honra
do indivíduo que exerce o cargo de presidente), justifica-se a existência de um
foro privilegiado. Nos casos de condenações de prefeitos, governadores,
ministros, senadores e deputados, só para citar alguns cargos, haveria,
contudo, muito pouco ou mesmo nenhum abalo da ordem política nacional. A
prática tem demonstrado que, em casos como esse, os acusados são afastados de
seus cargos muito antes de um julgamento definitivo, que, quando ocorre, muitas
vezes desperta pouco interesse da grande mídia.
A prerrogativa de função em uma república só pode e deve existir para
garantir a ordem política do Estado, e nunca para melhor garantir a reputação
dos titulares desses cargos. Do contrário, estar-se-ia retomando o velho modelo
do juiz comum para julgar o povo e do juiz extremamente qualificado para julgar
os barões, partindo da falácia de que a honra de um cidadão do povo tem menor
valor que a honra de um nobre.
Para tentar sanar essa excrescência jurídica completamente incompatível
com os ideais republicanos, tramita no Senado a Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) nº 81/2007, de autoria do senador Gerson Camata (PMDB-ES),
que está aguardando designação de relator na Comissão de Constituição, Justiça
e Cidadania (CCJ) desde 14 de janeiro de 2011, em uma demonstração explícita de
falta de interesse político de se votar a matéria. Diante da letargia do
Senado, o deputado federal Rubens Bueno (PPS-PR) propôs este ano a PEC nº
142/2012, com o mesmo objetivo, de pôr fim ao foro privilegiado. Se não houver,
porém, uma efetiva mobilização popular em torno do tema, dificilmente será
votada e aprovada, pois não é crível que deputados e senadores cortem seus
próprios privilégios de forma espontânea.
A construção da república no Brasil ainda é uma tarefa inacabada. Nossa
cultura aristocrática está por todas as partes, desde as placas pretas dos
carros de luxo até os títulos de doutor usados como pronome de tratamento. E
está também no foro privilegiado. É lamentável que os atuais “barões”, “condes”
e “duques”, eleitos pelo voto popular ou indicados pelo presidente da
República, insistam em se apropriar da res publica e defender seus privilégios
como garantias necessárias para o exercício do cargo. O povo, porém, não pode
nem deve aguardar passivamente o dia em que essa nobreza irá abdicar por conta
própria de seus privilégios, pois o mais provável é que esse dia nunca chegue.
Os princípios republicanos não foram um presente concedido pelos nobres
aos plebeus. Foram conquistas. E é preciso conquistar também o fim do
privilégio de foro, pois a principal causa da impunidade dos corruptos de alto
escalão é esta blindagem que hoje lhes é concedida. Somente quando ministros e
lavradores forem julgados pelos mesmos juízes poderemos começar a construir uma
república digna do nome.