quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Herói. Morto. Nós.

Amanhã completa trinta e três anos, mas eu lembro do fato, como se houvesse ocorrido ontem. Eu era adolescente, estudava de noite, na oitava série. Trabalhava durante o dia, e estava envolvido com muitas coisas, naquele turbilhão da puberdade, etc. Mas lembro demais desse caso, porque o herói era daqui.

Na verdade, ele era de Cerro Largo, mas iniciou sua carreira no Exército em São Luiz Gonzaga, e acho até que sua mulher era daqui. Muitas pessoas o conheceram, pessoalmente, então a repercussão do seu ato foi muito forte na cidade.

O herói, no caso, foi Silvio Hollembach, sargento do Exército que morava e trabalhava em Brasília, e no dia 27 de agosto de 1977, estava passeando com sua mulher e filhos pequenos no Zoológico, quando ouviu os gritos de um menino que havia caído no fosso das ariranhas.

As ariranhas são animais normalmente dóceis, mas ferozes na defesa de seu território. Estavam atacando o menino, quando Sílvio jogou-se no fosso, conseguindo resgatá-lo. Sílvio, no entanto, foi muito mutilado, e morreu três dias depois, em decorrência dos ferimentos.

Uma coisa muito triste, isso. Se há uma pessoa que pode ser chamada de herói, é esse rapaz, que tinha somente 33 anos, na época. E mulher, e quatro filhos pequenos.

Podia ter se omitido, ou até tentado ajudar sem se expor tanto, mas ignorou todos os perigos e jogou-se no fosso. Certamente, percebeu que era a única maneira de resgatar o menino. E não vacilou. Esse é o herói. O herói não vacila.

Mas não escrevo hoje para falar do Sílvio Hollembach, embora acredite que mereça todas as lembranças e homenagens.

Escrevo para falar de uma outra pessoa. Um jornalista, talvez herói também, que não tem nada a ver com São Luiz. Seu nome é Lourenço Diaféria.

Escrevo para contar - para quem não viveu - como eram as coisas na ditadura.

Pois o Lourenço Diaféria era cronista da Folha de São Paulo, e dias após a tragédia publicou uma coluna sobre o fato. O título, "Herói. Morto. Nós".

O texto foi considerado ofensivo às forças armadas, e Diaféria foi imediatamente preso e enquadrado na famosa Lei se Segurança Nacional.

Seu espaço foi mantido em branco, no jornal, por alguns dias, até que demitiram também o diretor de Redação, Cláudio Abramo, que foi substituído por um homem de confiança do 3º Exército. Quem? Bóris Casoy. Ele mesmo, o detrator dos lixeiros. Mais detalhes, ver aqui.

Bueno. Sou filho da ditadura, nascido em 1963. Fui alfabetizado em 1970. Lembro com clareza que, uma das primeiras coisas que aprendi a escrever de carreirinha, foi "General Emílio Garrastazu Médici".

A gente brincava que era "Garrafa Azul", e não tinha menor idéia de quem era. Mas mandavam a gente praticar esse nome. Por que? Sabe-se lá. Coisas da ditadura. Coisas inexplicáveis, como a reação à crônica do Diaféria.

Todos nós, sãoluizenses, ficamos chocados na época da morte do Sargento Hollembach. Mas nos orgulhávamos do herói quase-conterrâneo. Ainda mais que o Zoológico de Brasília foi, depois, rebatizado com o nome dele.

Só que ninguém, daqui, ficou sabendo do desdobramento do fato, com o jornalista Diaféria. Esse tipo de informação nunca chegava ao povo. Eu mesmo, que sou militante, e vivi na época, somente soube disso hoje, através da blogosfera.


Agora leiam, adiante, a crônica da discórdia. Vejam se isso é motivo para prender, processar ou demitir alguém. Vejam como as ditaduras tem medo das palavras ...

E recordem que estamos em época de eleição, e esse povo, que usurpou, torturou, matou, perseguiu, tem representantes concorrendo, sedentos por voltar ao poder.

E também que ainda há muitos municípios do Brasil sendo governados por essa gente, ou por seus herdeiros. Por esse lixo de gente, para quem educar era ensinar a escrever "Garrastazu". Esse lixo gente que tem medo das palavras ...

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Herói. Morto. Nós.
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*Lourenço Diaféria

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo.

Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói, como o santo, é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel - onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer - oxidou-se no coração do povo.

O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento - apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher - salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis - tarde demais.

*Lourenço Diaféria foi "absolvido" em 1979. Morreu em 2009.
A crônica foi publicada em 1º de setembro de 1977, no Jornal Folha de são Paulo.

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Um comentário:

  1. Muito interessante essa história. Eu só conheci a Escola Sargento Sílvio, em Cerro Largo, mas nunca soube a história ou quem era o Sargento Sílvio.

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