Tive aulas com professores daqueles que vale a pena só ficar escutando. Rui Portanova, por exemplo, que na mesma época tinha lançado um livrinho que deveria ser obrigatório em todos os cursos de Direito: "A Motivação Ideológica da Sentença". No mínimo, para todos os jovens juízes do Estado.
A maioria dos professores, no entanto, prendia-se àquelas vertentes formalistas, que engessam a construção da jurisprudência, e à própria realização da justiça. Notei que valia mais, para a maioria dos professores (pelo menos naquela época), a forma que o conteúdo da decisão. Isso era transparente. O curso era de dois anos, mas desisti após concluir o primeiro semestre. Vi logo que não era a minha praia.
Esse período, no entanto, valeu a pena por ter sido aluno, além do Portanova, do Márcio de Oliveira Puggina, uma pessoa extraordinária, Juiz de Direito interessado em verificar como as decisões judiciais importam, concretamente, na vida das pessoas, e a partir daí aplicar a jurisdição.
Márcio Puggina foi um dos fundadores do Direito Alternativo, e marcou época quando era juiz em Santa Rosa, e ao decidir um caso, sentenciou "deixo de aplicar a lei, nesse caso concreto, pois o resultado seria injusto". E ensinou que a jurisdição não se prende somente à aplicação da lei, friamente, como se vê cada vez mais nos dias de hoje.
O dizer o direito se embasa em conceitos muito mais amplos, nos quais o juiz deve se basear. Se a lei não resolve de forma justa a questão, deve ser deixada de lado, passando então o julgador a se embasar nos princípios gerais do Direito. Para quem não conhece o Direito Alternativo, recomendo uma pesquisa no Google. Um rápido entendimento pode ser conseguido aqui.
Eu acho que aprendi alguma coisa nesse breve convívio. Márcio Puggina foi uma pessoa dessas cuja ausência é sentida, neste nosso vale de mediocridades. Se ele tivesse conseguido prosseguir, certamente teria contribuído muito mais, ainda, para a humanização do Judiciário e para a sociedade brasileira.
Guardei por muito tempo o recorte de uma coluna do Correio do Povo, no qual ele falava das importantíssimas funções do Judiciário, após a redemocratização. E também das muitas garantias que o texto constitucional conferia aos magistrados, para que pudessem livremente "dizer o direito". Essa coluna era de 1989, muito antes que o conhecesse pessoalmente, então quando fui seu aluno, já era um fã. Nunca mais achei esse texto. Deve estar perdida dentro de algum livro velho.
O texto em questão encerrava com uma frase lapidar, para a época: "O Judiciário deve ser, agora, o operário da sua própria reconstrução".
Para mim, o Judiciário brasileiro falhou nessa reconstrução. Uma prova disso são as palavras do Ministro Joaquim Barbosa, figura ímpar no Supremo Tribunal Federal, em entrevista ao jornal O Globo, no dia 03.01.2010, que eu pesquei do Cloaca News, e reproduzo adiante.
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"O ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), há dois anos ganhou notoriedade por relatar o processo do mensalão do PT e do governo Lula. Em 2009, convenceu os colegas a abrir processo contra o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) para apurar se ele teve participação no mensalão do PSDB mineiro. Em entrevista ao GLOBO, Joaquim não quis comentar o mensalão do DEM, que estourou recentemente no governo de José Roberto Arruda, do Distrito Federal. Mas deixou clara sua descrença na política e sua dificuldade para escolher bons candidatos quando vai votar. E o ministro, de 55 anos, não poupou nem os tribunais: “O Judiciário tem uma parcela grande de responsabilidade pelo aumento das práticas de corrupção em nosso país”.
O Globo: Por que aparecem a cada dia mais escândalos envolvendo políticos? A corrupção aumentou ou as investigações estão mais eficientes?
JOAQUIM BARBOSA: Há sim mais investigação, mais transparência na revelação dos atos de corrupção.Hoje é muito difícil que atos de corrupção permaneçam escondidos.
O Globo: O senhor é descrente da política?
JOAQUIM: Tal como é praticada no Brasil, sim. Porque a impunidade é hoje problema crucial do país. A impunidade no Brasil é planejada, é deliberada.As instituições concebidas para combatê-la são organizadas de forma que elas sejam impotentes, incapazes na prática de ter uma ação eficaz.
O Globo: A quais instituições o senhor se refere?
JOAQUIM: Falo especialmente dos órgãos cuja ação seria mais competente em termos de combate à corrupção, especialmente do Judiciário. A Polícia e o Ministério Público, não obstante as suas manifestas deficiências e os seus erros e defeitos pontuais, cumprem razoavelmente o seu papel. Porém, o Poder Judiciário tem uma parcela grande de responsabilidade pelo aumento das práticas de corrupção em nosso país. A generalizada sensação de impunidade verificada hoje no Brasil decorre em grande parte de fatores estruturais, mas é também reforçada pela atuação do Poder Judiciário, das suas práticas arcaicas, das suas interpretações lenientes e muitas vezes cúmplices para com os atos de corrupção e, sobretudo, com a sua falta de transparência no processo de tomada de decisões.Para ser minimamente eficaz, o Poder Judiciário brasileiro precisaria ser reinventado.
O Globo: Qual a opinião do senhor sobre os movimentos sociais no Brasil?
JOAQUIM: Temos um problema cultural sério: a passividade com que a sociedade assiste a práticas chocantes de corrupção. Há tendência a carnavalizar e banalizar práticas que deveriam provocar reação furiosa na população.Infelizmente, no Brasil, às vezes, assistimos à trivialização dessas práticas através de brincadeiras, chacotas, piadas. Tudo isso vem confortar a situação dos corruptos. Basta comparar a reação da sociedade brasileira em relação a certas práticas políticas com a reação em outros países da America Latina. É muito diferente.
O Globo: Como deviam protestar?
JOAQUIM: Elas deviam externar mais sua indignação.
O Globo: É comum vermos protestos de estudantes diante de escândalos.
JOAQUIM: O papel dos estudantes é muito importante. Mas, paradoxalmente, quando essa indignação vem apenas de estudantes, há uma tendência generalizada de minimizar a importância dessas manifestações.
O Globo: A elite pensante do país deveria se engajar mais?
JOAQUIM: Sim. Ela deveria abandonar a clivagem ideológica e partidária que guia suas manifestações.
O Globo: O próximo ano é de eleições. Que conselho daria ao eleitor?
JOAQUIM: Que pense bem, que examine o currículo, o passado, as ações das pessoas em quem vão votar.
O Globo: Quando o senhor vota, sente dificuldade de escolher candidatos?
JOAQUIM: Em alguns casos, tenho dificuldade. Sou eleitor no Rio de Janeiro.Para deputado federal, não tenho dificuldade, voto há muito tempo no mesmo candidato. Para governador, para prefeito, me sinto às vezes numa saia justa. O leque dos candidatos que se apresenta não preenche os requisitos necessários, na minha opinião. Não raro isso me acontece. Não falo sobre a eleição do ano que vem, porque ainda não conheço os candidatos."
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